A raposa louca

Zara Gerhardt

Publicado em: Mais Causos do Brasil Profundo

 

Encontrei seu Ciço pela primeira vez numa manhã de feira. O que me chamou a atenção naquele caboclo mirrado e falante, com chapéu de couro e montado num jegue, foi que ele estava comprando uma raridade na região: tomates. Eram lindos, vermelhos, da cor do sangue, e brilhavam ao sol. A menina que estava comigo contou que ele tinha enricado vendendo couro de raposa. Achei estranho, mas depois fiquei sabendo que aquilo significava que ele havia acabado de vender um lote de couro, em Juazeiro.

Soube também que seu Ciço só vinha para a rua nos dias de feira, o resto da semana passava na fazenda, lá para os lados de Pinhões. Morava sozinho, num rancho de pau a pique coberto com palha de buriti. De fato, morava com o Jacaré, um vira-lata avermelhado, de pelo curto com uns tufos mais altos, pretos, brancos e vermelhos; era feio como a necessidade, mas amigo que só ele. Andavam sempre juntos. Jacaré era o filho que o seu Ciço não teve – com ele dividia tudo, comida, água e teto: só não dividia a rede.

Pinhões era o nome de um açude cerca de 10 km a oeste de Poço de Fora: vilarejo com menos de 500 pessoas, no meio da caatinga da Bahia, onde morei por seis anos. A vila tinha quatro ruas e uma praça, e quando o pessoal das fazendas ia até lá dizia que ia para a rua.

O vale do rio Curaçá, onde estava Poço de Fora, ficava perto do raso da Catarina, e era de uma secura deplorável. Chovia de dezembro a março, época na qual os rios corriam – alagavam tudo – e a caatinga se vestia de verde. Fora disto, era um mar de cinza com solo esturricado e vegetação retorcida: água só nos açudes ou poços, verde só na catingueira, na palma e no mandacaru.

A fazenda do seu Ciço estava a três quilômetros do açude de Pinhões, cuja água era cheia de caramujos e contaminada por xistossoma. Mas era esta água que abastecia a casa e matava a sede dos animais, sempre transportada em duas bombonas azuis, amarradas no jegue. Na fazendola havia ainda umas cabras magras e umas poucas galinhas, cujos ovos, junto com os peixes pescados no açude, eram trocados por mercadorias na feira.

O dinheirinho extra era produto da venda do couro, principalmente das raposas.

Em agosto-setembro, no auge do calorão e da seca, era a época da raposa louca. Diziam que o animal enlouquecido atacava os viventes: não sei se ficavam irritáveis na época do cio, se era desespero de fome e sede, ou se era raiva mesmo. Nunca as vi, embora o pessoal que me acompanhava regularmente no campo ficasse sempre alerta. Seu João, motorista, tinha tanto medo que preferia ficar fechado no carro – mesmo com o sol a pino – a andar pelas picadas. Elas atacavam as pessoas com saltos certeiros mirando a cabeça, o pescoço e os olhos. Uma vez atingida, a presa não tinha escapatória: era mordida e arranhada no pescoço, morrendo por hemorragia. Para matar o bicho era necessário golpeá-lo com facão, de baixo para cima, abrindo a barriga. O caçador deveria esperar o animal com o facão em riste, aparando-a no pulo com a arma, da mesma forma que os caçadores de onça faziam com a azagaia. Mesmo com peso menor que a onça, a raposa doida não era menos perigosa. 

Seu Ciço era mestre caçador e fazia a festa durante a época da raposa louca, quando não precisava procurá-las para matar, era-se caçado por elas. Seu fiel Jacaré era um ótimo ajudante, dirigindo os bichos diretamente para o facão do dono. Depois de mortas elas eram carneadas e o couro, cuidadosamente retirado, era secado ao sol. Lotes de cerca de meia dúzia eram levados para venda em Juazeiro, de tempos em tempos; de lá iam para o sul, para os casacos das madames. Era quando seu Ciço tinha um dinheirinho a mais para suas excentricidades: como comprar os tomates vermelhos, além de farinha, feijão, açúcar e café.

Quando o encontrei, em plena época da raposa louca, ele estava esperando caçar só mais uma para inteirar outro um lote.

 

 

Na semana seguinte seu Ciço não apareceu na feira. O povo de Poço de Fora ficou cismado, pensando no que poderia ter acontecido - ele não costumava falhar...

Lá pelas três da tarde, depois que todos haviam voltado do campo, chegou o Zé Valdo, nosso misto de preparador de amostras, relações públicas e correio ambulante, pedindo para usar um carro da empresa. Queria ir até a casa do seu Ciço para saber notícias dele.

- Vamos fazer algo melhor - falei. - Eu vou dirigindo e você pode levar mais algum menino conosco. Se ele estiver doente, já o levamos para Senhor do Bom Fim.

No sol forte e com o chão da Caatinga reverberando, pegamos meu carro de campo e fomos em direção a Pinhões. Ao longe avistamos um bando de urubus voejando. Alguma carniça de gado - pensei. Logo Zé Valdo mostrou estranheza ao ver que os urubus estavavam em volta da casa do seu Ciço. Chegando lá vimos que eles estavam não só em volta, como também lá dentro!

Na entrada, na frente da porta aberta estava o Jacaré e uma raposa prateada, ambos espetados pelo mesmo facão, como se estivessem prontos para assar. Dentro estava seu Ciço morto, já cercado de urubus, sentado numa cadeira: a perna da calça rasgada e ferida, o trinta e oito no chão, o tampo da cabeça e uma parte dos miolos presos na palha do teto, sangue por tudo e por cima da mesa, junto com os tomates, já podres.

Horrorizada com o acontecido e com a cena, emprestei um carro maior para o Zé Valdo providenciar as rezadeiras e o enterro do morto.

No dia seguinte, o cortejo com o seu Ciço na rede passou em frente do escritório, em direção ao cemitério. Foi enterrado junto com o Jacaré.

A raposa prateada foi deixada para os urubus.

Afinal de contas, o couro varado até o lombo pelo facão não tinha mais valor.

 

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