Capítulo 9

Evolução tectônica

9.1. Introdução.

A compreensão da história de um cinturão orogênico envolve todos os elementos geológicos, mas, basicamente, compreende uma integração dos dados estratigráficos com a geologia estrutural (Howell, 1993). Os dados estratigráficos fornecem informação a respeito da paleogeografia e idades das unidades de um cinturão orogênico. Os dados estruturais descrevem a configuração destas unidades. Segundo Howell (1993), um cinturão orogenético é essencialmente um quebra-cabeças formado por uma coleção de peças crustais. Para reconstruir a sequência de eventos que originaram um cinturão orogênico, deve-se identificar as peças fundamentais que compõem o quebra-cabeças. A cada uma destas peças denomina-se terreno tectonoestratigráfico: "um conjunto de rochas limitado por falhas, com uma estratigrafia distinta, que caracteriza um ambiente geológico particular" (Howell, 1993). Esta definição implica em que determinado terreno tectonoestratigráfico não tem relações genéticas com terrenos vizinhos.

Os dados apresentados nos capítulos precedentes, demonstram que a Sinforma de Araxá acha-se estruturada em três escamas tectônicas : inferior, intermediária e superior. Cada escama apresenta arranjo litoestratigráfico interno próprio, reflexo de ambientes tectônico-sedimentares-ígneos diferentes e está limitada por zonas de cisalhamento subhorizontais e subverticais. Portanto, com base na definição de Howell (1993), cada escama pode ser tratada como um terreno tectonoestratigráfico. Esta visão se contrapõe à pontos de vista anteriores ( Barbosa et al, 1970; Paulsen et al. 1974; Ferrari, 1989b) que assumem que as diversas unidades estratigráficas podem representar transições ou fácies umas das outras, revelando uma concepção tectônica fixista. No presente trabalho pressupõe-se uma elevada mobilidade das diversas unidades, sem vínculos genéticos aparentes e oriundas, por aloctonia, de regiões geográficas distintas.

Pode-se classificar as escamas tectônicas da Sinforma de Araxá em três tipos de terrenos tectonoestratigráficos:

  1. escama tectônica inferior: terreno Canastra - fragmento de margem continental passiva;
  2. escama tectônica intermediária: terreno Ibiá - fragmento de porção sedimentar de arco vulcânico;
  3. escama tectônica superior: terreno Araxá - fragmento de bacia oceânica intrudido por granitos colisionais.

9.2. Paleoambientes.

9.2.1. Terreno Canastra: fragmento de margem continental passiva.

Este terreno representa o Grupo Canastra, cuja estratigrafia interna sugere um ambiente marinho plataformal com características regressivas. Dados isotópicos Sm-Nd ( TDM = 2,2 Ga.) demonstram que seus sedimentos provêm de áreas fonte antigas, com elevado tempo de residência crustal (e NdT = -12,77), indicando retrabalhamento sedimentar. Pode-se inferir que estas áreas fonte estejam localizadas à leste, no continente do São Francisco, que é a região que tem rochas de idades proterozóicas e arqueanas. Segundo Pimentel et al. (1999) a deposição destas rochas na borda oeste do continente do São Francisco iniciou-se em torno de 1,1 Ga.

 

9.2.2. Terreno Ibiá: fragmento de porção sedimentar de arco vulcânico.

Representado pelas rochas do Grupo Ibiá, este fragmento mostra forte vínculo genético com áreas fonte relacionadas à arcos vulcânicos e gerou-se, possivelmente, num contexto sedimentar que envolveu correntes de turbidez (turbiditos distais?). Suas idades modelo de 1,1 a 1,33 Ga., indicam áreas fonte jovens. As únicas áreas fonte, jovens, aflorantes e próximas, referem-se aos arcos vulcânicos do oeste de Goiás. Os baixos valores de e NdT ( -0,11 a –0,93 ) implicam em sedimentos com curto tempo de residência crustal, possivelmente de 1° ciclo sedimentar. Estes fatos estão em concordância com os dados petrográficos. Deste modo, este terreno não mostra nenhuma relação genética com o terreno anterior e não tem quaisquer vínculos com áreas fonte mais antigas ligadas ao continente do São Francisco. É um terreno ligado geneticamente aos arcos magmáticos do oeste de Goiás, ou a arcos magmáticos situados sob a cobertura fanerozóica representada pela Bacia do Paraná. Pimentel et al. (1999), concluem que a longa história do magmatismo de arco, entre 0,9 a 0,63 Ga., sugere que durante a maior parte deste intervalo de tempo, a margem oeste do continente São Francisco fazia face a uma grande bacia oceânica, onde arcos de ilhas intraoceânicos foram formados e acrecionados uns aos outros ou à margem continental. Estes arcos desenvolveram-se a partir da convergência entre os continentes do Amazonas e do São Francisco, com subducção de oeste para leste. Estes fatos implicam também na possibilidade de que a bacia oceânica localizada entre os arcos magmáticos e a margem do continente São Francisco tenha características de bacias de retro-arco (Pimentel, comunicação verbal). Assim, o terreno Ibiá pode representar o aporte de detritos oriundos destes arcos num contexto basinal de retro-arco.

 

 

9.2.3. Terreno Araxá: fragmento de bacia oceânica intrudido por granitos colisionais.

Este terreno representa a sequência de anfibolitos (ígnea máfica e ultramáfica) capeada por micaxistos e quartzitos (sedimentos detríticos dominantemente pelíticos) do Grupo Araxá e intrudido por granitos.

A comprovação petrográfica da existência de basaltos, portanto de derrames vulcânicos, a possibilidade de que os anfibolitos grosseiros representem gabros, a presença de corpos ultramáficos e de finas camadas de ortoquartzitos (chert) sugerem que este conjunto ígneo constitua parte de uma crosta oceânica. Geoquimicamente, estas rochas são basaltos toleiíticos de alto ferro e alto TiO2, e mostram padrões de elementos traço e ETR similares aos de E-MORB. Seu baixo valor de e NdT (+1,10) implica em origem por fusão do manto superior. Os valores de Sm e Nd dos anfibolitos são intermediários entre MORB e toleiítos continentais, o que pode indicar contaminação crustal do magma original. Estes fatos podem estar significando a mistura de um magma astenosférico com magma gerado a partir de fusão parcial da litosfera. Este componente litosférico é representado pelos elevados valores de ETRL (Price et al., 1990). Assim, a possibilidade de que o assoalho oceânico do terreno Araxá, tenha se gerado em uma bacia oceânica de retro-arco, como sugerido para a Faixa Brasília por Pimentel, é bastante plausível. No entanto, deve-se destacar que os anfibolitos do terreno Araxá diferem geoquimicamente dos demais anfibolitos da Faixa Brasília. Estas diferenças, indicando, por exemplo, magmatismo dominantemente continental, e subordinadamente do tipo MORB, para a Nappe de Passos, deixam bem claro o fato de que deve-se ter muita cautela na generalização de interpretações locais, mas reforça a possibilidade de acresção de terrenos tectonoestratigráficos.

Dados isotópicos para os metassedimentos ( e NdT = -10,21 e TDM = 1,9 Ga.) conduzem à interpretação de que representem a mistura de detritos provenientes de áreas fonte mais antigas e mais jovens. Seus valores isotópicos são intermediários entre os dos terrenos Ibiá e Canastra. Certamente seus sedimentos foram retrabalhados e denotam tempo de residência crustal maior do que o dos sedimentos do terreno Ibiá, e menor do que os do terreno Canastra.. É possível que representem o capeamento sedimentar do assoalho oceânico, com contribuição de áreas fonte do continente do São Francisco, à leste, e dos arcos magmáticos, à oeste.

Os corpos de granitos peraluminosos, com assinatura geoquímica e mineralógica colisional, intrusivos nas rochas metamáficas e metassedimentares, marcam a época da colisão. Como são intrusivos em rochas metamorfisadas em 630 M.a., o processo colisional é mais novo. A datação absoluta deste evento magmático poderá, futuramente, demarcar a época precisa desta colisão.

9.3. Colagem de terrenos – implicações para a evolução tectônica da Faixa Brasília e colagem final do continente Gondwana..

Relacionados os três diferentes tipos de terrenos tectonoestratigráficos da Sinforma de Araxá aos seus ambientes tectônicos específicos, pode-se tentar uma interpretação com relação à sua reunião final.

Os dados metamórficos indicam que os diversos terrenos foram submetidos a um evento de metamorfismo regional ( M1), do tipo barroviano, que alcançou o fácies xisto verde no terreno Ibiá, fácies xisto verde, zona da clorita até zona da granada, no terreno Canastra e fácies anfibolito no terreno Araxá. A idade deste metamorfismo situa-se em torno de 630 M.a. (isócronas Sm-Nd). Este evento foi acompanhado de deformação D1, que gerou uma foliação penetrativa (S1), presente em todos os terrenos. Como os indicadores cinemáticos desta fase foram obliterados por deformações posteriores, não é mais possível estabelecer-se sua história e seu significado na região de Araxá. Após o pico metamórfico, um evento retrometamórfico RM1, não acompanhado de deformação, está registrado nos terrenos Canastra e Araxá. Seu significado também permanece obscuro. A partir daí, o caminho PTt segue uma direção no sentido de temperaturas e pressões cada vez menores, sugerindo que os eventos subsequentes à M1/D1 deram-se sob condições crustais cada vez mais rasas. À RM1, seguiu-se evento deformacional D2 acompanhado de retrometamorfismo M2, nas condições do fácies xisto verde. A presença de foliação subhorizontal, com caráter milonítico, em espessas zonas de cisalhamento com dobras intrafoliais, denota o desenvolvimento de uma tectônica tangencial que afetou e soldou todos os terrenos. Em seus estágios precoces (D2p), esta deformação apresenta cinemática para NNE e foi acompanhada pelo alojamento de rochas granitóides. Estas representam, em parte, leucogranitos peraluminosos, a duas micas, típicos de ambientes relacionados à zonas de cisalhamento em orógenos colisionais. O registro desta fase precoce é pouco nítido no terreno Canastra, mas bem preservado no terreno Araxá. No terreno Ibiá há o registro de uma lineação de estiramento com transporte para NNE, mas não ocorrem granitóides intrusivos. Isto significa que durante o estágio D2p, houve a intrusão dos granitos e também a imbricação dos diversos terrenos, na forma de escamas tectônicas com transporte para NNE. Interpreta-se esta fase como a colisão, após 630 M.a., entre o continente do São Francisco, posicionado à NE e o continente do Paraná, situado à SW. Na continuidade de D2p as escamas tectônicas passam a ser transportadas no sentido SE, fato também observável na Nappe de Passos. A este evento designou-se D2t, pelo fato de que, aparentemente, as lineações NE rotacionam gradualmente para SE. As escamas tectônicas intermediária e superior, especialmente esta, passam a deformar-se num estreito corredor NW-SE, desenvolvendo rampas laterais sinistrais e dextrais. A escama inferior também registra muito bem este transporte para SE. Durante D2t as dobras são oblíquas, com charneiras paralelas à lineação de estiramento, e planos axiais mergulhando para SSW. Este fato, também comum nas rochas da Nappe de Passos, levou Valeriano (1992) à concluir pela presença de uma componente compressiva N-S, importante, mas secundária à componente compressiva E-W, durante o transporte da Nappe para SE. Lineações N-S expressam este movimento no domínio externo da Faixa Brasília na região de Passos (Valeriano et al., 1998). Esta componente secundária SW-NE em Araxá, pode ser interpretada como a continuidade da colisão entre o continente do São Francisco e o continente do Paraná, durante forte evento colisional E-W, agora entre o continente Amazônico e o continente do São Francisco. Alternativamente, a fase D2t poderia representar uma tectônica de escape, que confinaria a matéria em estreitos corredores de deformação, como discutido no capítulo 4. Este processo, no entanto, é perfeitamente substituível por uma interpretação baseada em interação tríplice de segmentos crustais continentais.

Uma última fase deformacional, D3, gerou grandes zonas de cisalhamento subverticias, com direções WNW-ESE e cinemática sinistral, que tendem a dispersar os terrenos reunidos nas fases anteriores. Os campos tensionais ligados à D3 são similares aos de D2t. As dobras F3 também são assimétricas, com vergências NE e planos axiais mergulhando para SW. Este quadro é semelhante ao desenvolvido durante D2t, porém sob condições crustais mais rasas. A fase D3 representa as últimas manifestações tectônicas importantes do processo colisional iniciado em D2p, encerrando-se, termalmente, em torno de 580 M.a.

Os dados cinemáticos ilustram a complexa imbricação dos diversos terrenos tectonoestratigráficos. Este quadro é interpretado como resultado da interação entre três segmentos crustais continentais: São Francisco – Paraná – Amazonas.

Este modelo satisfaz tanto a situação deformacional/cinemática/ geocronológica de Araxá, como o registro de colisão na mesma época entre os continentes do Amazonas e do São Francisco, (Pimentel et al., 1999). Ao contrário destes últimos autores, no entanto, deduz-se que o modelo para a região de Araxá implica que os continentes Paraná e São Francisco colidiram num primeiro momento, seguindo-se sua colisão com o continente do Amazonas. Durante esta colisão os continentes do Paraná e do São Francisco, continuaram a interagir.

O modelo também pode se aplicar à região de Passos, explicando o comportamento cinemático dos domínios externo e interno (Valeriano et al., 1998), como resultado da colisão entre os três continentes.

A possível existência de um terreno tectonoestrigráfico, que não foi afetado pelo evento térmico regional de 630 M.a., na região de Ipameri - GO, com granitos colisionais com 790 M.a., pode reforçar a idéia de um evento colisional anterior, com cinemática ainda não conhecida.

A história evolutiva da Sinforma de Araxá, registra deste modo, importantes eventos metamórfico/tectono/magmáticos com implicações de caráter regional para a Faixa de Dobramentos Brasília, podendo-se pressupor que esta represente um orógeno com caráter tectônico misto, acrecionário (ou mesmo colisional) em sua evolução inicial, construido a partir da soldagem de diferentes terrenos tectonoestratigráficos, e francamente colisional em seus estágios finais (figura 9.1).

A aplicação da metodologia de tectônica de terrenos pode se constituir em importante ferramenta de trabalho, especialmente durante mapeamentos geológicos nesta faixa de dobramentos, e parece ser mais útil do que a distinção em domínios tectônicos interno e externo, por ser menos generalista, e permitir a montagem do complexo quebra-cabeças regional, a partir de peças desconectadas. Do mesmo modo, a técnica pode auxiliar na compreensão da colagem final dos terrenos maiores, que gerou o continente Gondwana.

REFERÊNCIAS