Capítulo 4

Análise Estrutural

4.1. Introdução.

Neste trabalho, são analisadas as estruturas presentes nas principais zonas de cisalhamento que delimitam e atravessam as diversas escamas tectônicas da Sinforma de Araxá. Esta análise é baseada em aspectos geométricos e cinemáticos.

A importância das zonas de cisalhamento na evolução dos sistemas orogenéticos tem sido cada vez mais reconhecida por geólogos estruturais, uma vez que elas registram a história deformacional das rochas. São feições comuns ao longo dos limites de placas tectônicas, demarcam blocos alóctones no interior de cinturões orogênicos, e são responsáveis pela acomodação da deformação gerada pela interação das placas tectônicas (Coward, 1980; Hanmer e Passchier, 1991; Jardim de Sá, 1995; Means, 1995).

O estudo das zonas de cisalhamento de caráter dúctil-rúptil a dúctil deve ser realizado através do Método de Correlação Cinemática. Segundo Fernandes et al. (1991), este método é "...baseado na caracterização das condições de fluxo plástico das rochas através da análise de estruturas em tectonitos em grandes áreas (ou em áreas-chave), particularmente através do registro dos padrões de distribuição e orientação de lineações (estiramento, mineral) em conjunto com a análise dos indicadores cinemáticos em rochas miloníticas associadas". Um aspecto importante neste método é a identificação do plano correto de observação dos indicadores cinemáticos ( Hanmer e Passchier, 1991; Passchier et al., 1993; Passchier e Williams, 1996). Para tanto, pressupõe-se que a foliação e a lineação de estiramento nela contida estão no plano XY do elipsóide de deformação e que a lineação de estiramento é paralela à direção X, que indica a direção de fluxo. Deste modo, as observações de indicadores cinemáticos devem ser feitas no plano XZ do elipsóide de deformação finito.

Um aspecto crítico no método é a definição da sucessão temporal dos eventos cinemáticos e sua correlação (Fernandes et al., 1991) e a possibilidade de aplicação de metodologia geocronológica adequada a cada caso, em função do grau e paragêneses metamórficas (Gromet, 1991; Freeman et al., 1997). Fernandes et al. (1991) argumentam que "... porções diversas da faixa móvel, com padrões cinemáticos similares, podem apresentar idades diferentes e unidades apresentando padrões cinemáticos diversos podem ser de mesma idade". Isto deve servir de alerta às tentativas de correlação entre áreas distantes, antes que sejam conhecidas, com certo detalhe, suas histórias deformacionais.

Outra questão relevante no estudo das zonas de alta deformação é a caracterização de suas histórias termais, isto é das condições de metamorfismo atuantes durante a deformação (Fernandes et al., 1993). Neste sentido, faz-se necessário um estudo dos mecanismos de deformação em escala microscópica. No presente trabalho os dados oriundos de tal estudo são descritos no capítulo 5.

O cenário que surge da integração de todos os dados estruturais na Sinforma de Araxá permite demonstrar-se a existência de três fases deformacionais dúcteis, com transição para campos rúpteis, denominadas D1, D2 e D3 (Tabela 4.1). Representam regimes tectono-metamórficos, com distintas posições crustais, desde regiões mais profundas (D1) até mais rasas (D3), nos quais processos de tectônica tangencial, implicando no transporte de lâminas de empurrão para NE, e escape tectônico, que confina lâminas de empurrão num corredor NW-SE, com tranporte para SE, cedem lugar a uma tectônica transcorrente, com cinemática sinistral, que encerra os eventos deformacionais dúcteis e molda a arquitetura final do orógeno. Verifica-se, deste modo, a justaposição de três unidades tectono-estratigráficas com o Grupo Araxá cavalgando o Grupo Ibiá e este, por sua vez, cavalgando o Grupo Canastra. O Grupo Ibiá, de mais baixo grau metamórfico, fica confinado entre duas unidades geológicas de grau metamórfico mais elevado, e todas as unidades acham-se truncadas por zonas de cisalhamento transcorrentes.

A dedução da evolução cinemática das três fases deformacionais permite reconstruir-se uma história na qual as direções de máxima compressão mostram uma rotação horária desde o quadrante NE até o quadrante SE (figura 4.1).

Uma possível fase deformacional D4 pode ter se desenvolvido na região, provocando o arqueamento suave das estruturas das fases anteriores. No entanto, estes dobramentos suaves podem estar geneticamente ligados à evolução final das zonas de cisalhamento transcorrentes.

1

2

3

4

5

6

7

D1

S1

L1

F1

M1

?

?

-

-

-

-

RM

-

-

D2p

S2p

Le2/Lm2p

F2p

RM2

Topo p/ NNW

Tangencial/empurrões/colisão

granitos

-

-

-

-

-

Alojamento sintectônico

D2p

S2p

Le2/Lm2p

F2p

-

Topo p/ NNE

Tangencial/empurrões/colisão

D2t

S2t

Le2/Lm2t

F2t

-

Topo p/ SE

Tangencial/empurrões/escape

D3

S3

Le3/Lm3

F3

RM3

Sinistral

Transcorrente

Tabela 4.1. Fases deformacionais, estruturas associadas e eventos metamórficos na região da Sinforma de Araxá. 1- Fases de deformação; 2 - Estruturas planares; 3 - Estruturas lineares; 4 - Dobras; 5 - Eventos Metamórficos; 6 - Cinemática; 7 - Estilo tectônico.

Para a caracterização das atitudes de planos e linhas é adotada a nomenclatura utilizada em medidas com a bússola CLAR, ou seja, para os planos, o primeiro valor representa o sentido de mergulho e o segundo o valor absoluto do mergulho, e para as linhas o primeiro valor mostra o sentido de caimento e o segundo o valor absoluto do caimento.

4.2. A fase deformacional D1

A única estrutura que pode ser atribuida à esta fase deformacional é uma foliação (S1), paralela ao bandamento composicional (S0). Acha-se transposta pelas foliações posteriores, mas ainda pode ser reconhecida em charneiras de dobras F2, em quartzitos micáceos do Grupo Canastra (figuras 4.2 a, b e c). É uma xistosidade grosseira nas litologias, cujo metamorfismo alcançou os fácies xisto verde superior e anfibolito, e fina nos termos de mais baixo metamorfismo, compondo trama planar dada pelo arranjo de micas, cloritas e anfibólios (metamorfismo M1) (figura 4.3). A gênese desta foliação ainda é desconhecida, uma vez que não foram encontradas dobras às quais ela poderia estar associada.

Ao término de M1, houve um evento de retrometamorfismo (RM), aparentemente não associado a uma fase deformacional, cujas principais feições são a transformação de granadas para cloritóides e o crescimento de porfiroblastos de cloritóides sobre a foliação S1.

Os eventos que se sucederam à D1 obliteraram em muito a trama associada ao evento; assim o reconhecimento de uma lineação geneticamente ligada à foliação S1, é um fato ainda incerto.

4.3. A fase deformacional D2

4.3.1. Introdução.

Esta fase deformacional é a mais desenvolvida e de mais fácil cartografia da região. Foi subdividida em duas subfases: uma deformação precoce (D2p) e uma deformação tardia (D2t), ambas acompanhadas de retrometamorfismo. Acham-se preservadas em todas as unidades tectono-estratigráficas da região e foram responsáveis pela justaposição de lâminas de empurrão com baixos ângulos de mergulho. Além disso, em seus estágios iniciais, foi acompanhada pelo alojamento de granitóides.

À fase D2p se associam uma lineação de estiramento (Le) e/ou mineral (Lm), contida no plano da foliação S2 além de diversos indicadores cinemáticos. Os elementos desta fase estão dobrados e transpostos pela fase D2t, principalmente nas porções inferiores da escama tectônica superior. Encontra-se porém, bem preservada nas porções superiores desta estrutura. Alguns afloramentos têm ambas as lineações impressas, permitindo assim a verificação de sua sucessão temporal.

4.3.2. A foliação S2

A estrutura principal da fase D2 é uma foliação S2, com atitude geral 300/20, e presente em praticamente todos os afloramentos estudados. Sua distribuição na região pode ser apreciada no mapa de foliações (anexo III). Apresenta-se ora como uma xistosidade, ora como uma clivagem de crenulação assumindo, na maioria das vezes, caráter milonítico. Neste caso, mostra-se como uma foliação milonítica, definida pelo paralelismo de bandas de diferentes composições e/ou granulometrias nas zonas de maior deformação. Nestas, acham-se imersos porfiroclastos circundados pela foliação e foliações S-C, onde a foliação mais antiga ( S ) assume formas sigmoidais e está circundada por bandas de cisalhamento (C ). No interior destas zonas de cisalhamento ainda é possível distinguir-se horizontes e lentes que preservam feições mineralógicas e texturais do metamorfismo M1, seja nos granada mica xistos ou nas rochas metabásicas. Nestas últimas, é notável a transição das tramas D1/M1 para as tramas D2/M2, observando-se o gradual desaparecimento das granadas e a cominuição generalizada dos grãos, de modo que a foliação S2 contorna lentes mais ou menos preservadas da deformação, assumindo um aspecto anastomosado (figura 4.4). Deste maneira, a foliação S2 não é penetrativa em todas as escalas, conferindo assim forte heterogeneidade à fase D2. Este fato dificulta , por exemplo, o estudo microscópico desta foliação nas lentes de rochas metabásicas, mas, por outro lado, permitiu a preservação de feições pré-D2, especialmente das texturas metamórficas M1 e, talvez, em parte, da herança química das rochas ígneas .

A foliação S2 só pode ser caracterizada como S2p quando está acompanhada apenas de lineações indiscutivelmente Le2p/Lm2p. Em alguns afloramentos, observa-se que as estruturas D2p foram rotacionadas para novas posições durante D2t, ou mesmo totalmente transpostas, o que, nestas situações, aumenta o grau de incerteza quanto à sucessão temporal das mesmas. Deste modo, nem sempre é possível afirmar-se que a foliação S2 está geneticamente associada à subfase precoce ou tardia. No entanto, considerando-se o caráter reliquiar de S2p e sua deformação por D2t, S2 foi tratada estatisticamente como uma única foliação que expressa de modo notável a fase D2t (figura 4.5 a).

Computando-se os dados de S2 relativos a cada unidade tectono-estratigráfica (figuras 4.5 b, c e d), verifica-se que ocorre uma mudança na atitude do plano médio em relação ao Grupo Canastra, que tende a se orientar na direção N-S, enquanto nos Grupos Araxá e Ibiá as atitudes mantêm-se praticamente as mesmas.

Levando-se em conta as atitudes de S2 no Grupo Canastra, fora da área de influência da zona de cisalhamento transcorrente da Bocaina (figura 4.5 e) e no interior desta (figura 4.5 f), deduz-se que o plano S2 foi rotacionado nas proximidades de estruturas relacionadas à fase deformacional D3.

 

4.3.3. Lineações D2p.

As lineações de estiramento contidas no plano S2 , associadas a indicadores cinemáticos que apontam transporte tectônico com topo para NNE, foram denominadas Le2p (figuras 4.6, 4.7, 4.8, 4.9). Compreendem agregados policristalinos de quartzo, porfiroclastos de feldspatos, anfibolitos e granitos alongados, granadas alongadas e paralelizam-se à lineações minerais marcadas por micas e anfibólios.

O padrão de distribuição de Le2p em mapa ( lineações cujos indicadores cinemáticos apontam para NNE - anexo IV), incluindo Lm2p, mostra que as mesmas foram rotacionadas tanto por influência de D2t como por D3. Isto explica, em parte, sua dispersão no diagrama da figura 4.6, mas também pode denunciar uma rotação nos campos tensionais regionais . Este fato parece claro na região do Ribeirão Galheirinho (figura 4.10)

Neste local conseguiu-se estabelecer as relações temporais entre as estruturas D2p e o posicionamento de granitos sintectônicos. Estes foram colocados após o desenvolvimento de lineações Le2p com transporte para NNW, em anfibolitos, marcadas pelo estiramento de granadas. A seguir, todo o conjunto foi deformado gerando-se lineações de estiramento com transporte para NNE (Figura 4.9). No entanto, as lineações associadas a indicadores de transporte tectônico para NNW ocorrem em diversos corpos graníticos, à norte e noroeste da cidade de Araxá, como ilustrado na figura 4.8. Esta aparente ausência de interferência no posicionamento da lineação por corpos granitóides indica que houve vários pulsos magmáticos ao tempo da evolução de D2p. Pode também indicar que o alojamento dos granitos não provocou a mudança de posição das estruturas mais precoces, e sim que as intrusões teriam sido condicionadas por campos tensionais regionais. Neste caso, estas lineações reliquiares teriam significado regional, ao invés de representarem apenas rotações locais. De qualquer modo, é um tema interessante para futuras investigações.

As lineações Le2p mostram-se paralelas à charneiras de dobras apertadas. As charneiras acusam caimento preferencial forte para NNE (figura 4.11). Estas dobras podem apresentar a S2 em posição plano axial (figura 4.2b). São normalmente recumbentes e sem raiz. Foram identificadas crenulações com amplitudes milimétricas a centimétricas e superfícies axiais subverticais, cujas linhas de charneira têm a mesma direção destas dobras, sendo possível que estejam ligadas à D2p.

O dobramento de S2p por D2t, no flanco SW da sinforma regional, ocasiona um efeito de aparente extensão (figura 4.9). O efeito deste dobramento é visível também em pequenas dobras e pode ser apreciado na figura 4.8 a (estereogramas a e b). O plano S2 é o mesmo, mas em a mergulha para NW e em b para SE, com a lineação mantendo a

mesma direção. Deste modo, é o plano que está dobrado, sem que a lineação tenha rotacionado.

Continuação...