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A GEOLOGIA, O GEÓLOGO E A SOCIEDADE

Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos

 

(palestra proferida na cerimônia de comemoração do Dia do Geólogo promovida por entidades e instituições de Geologia e realizada no Salão Nobre do Instituto de Geociências da USP em 30.05.2023)

 

A Geologia é a geociência que estuda a origem da Terra (e, portanto, do Universo), o processo histórico-geológico de sua evolução, sua composição, seus elementos formadores e faz a predição do futuro curso de desenvolvimento dos processos hoje atuantes no planeta. (Marina Potapova – geóloga russa)

Em suas variantes aplicadas de maior expressão, a Geologia Econômica e a Geologia de Engenharia, a Geologia trabalha na perspectiva de identificação e explotação de insumos minerais necessários ao Homem e na busca da harmonização das relações entre as atividades humanas e o meio físico geológico.

No exercício de sua maravilhosa profissão o geólogo é levado a “trafegar” por quatro dimensões que se interagem e se realimentam permanentemente:

 

1)       UNIVERSAL -  PLANETÁRIA

2)       HUMANA – CIVILIZATÓRIA

3)       CIENTÍFICA – PROFISSIONAL

4)       POLÍTICA - CIDADÃ

 

 

1 - Na dimensão Universal – Planetária o geólogo é levado a perceber seu planeta na imensidão maravilhosa, infinita e sagrada do Universo. O impacto dessa percepção é de tal alcance que, a par dos caminhos próprios da Ciência, o geólogo é naturalmente levado a reflexões e indagações de ordem filosófica e existencial.

 

Quem melhor traduziu a dimensão dessas percepções foi, sem dúvida, o astrofísico americano Carl Sagan, (1934 —1996), lembrando aqui que não há como ser um astrofísico sem incorporar para si próprio os conhecimentos e o olhar da Geologia.

 

Afirmava Sagan, “o nitrogênio em nosso DNA, o cálcio em nossos dentes, o ferro em nosso sangue, o carbono em nossas tortas de maçã foi feito no interior das estrelas em colapso. Nós somos feitos da poeira de estrelas.”

 

Quando, em fevereiro de 1990, em sua viagem de retorno de uma jornada de estudo do Sistema Solar, a espaçonave Voyager 1 foi, a pedido de Carl Sagan, acionada pela NASA para  tirar uma fotografia da Terra, de uma distância de seis bilhões de quilômetros. Na foto, a Terra surge na imensidão do Universo como um pequeno ponto azul, quase imperceptível, batizado por Sagan como Pálido Ponto Azul.

 

 

Sobre esse pálido ponto azul, divagou Carl Sagan:

 

“Olhem de novo para esse ponto. Isso é a nossa casa, isso somos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem já ouvimos falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. O agregado de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e saqueador, cada herói e cada covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada jovem casal apaixonado, cada mãe e pai, cada criança esperançosa, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada superestrela, cada líder supremo, cada santo e cada pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso num raio de sol.

A Terra é um cenário muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em sua glória e triunfo, eles pudessem se tornar os chefes momentâneos de uma fração desse ponto. Pense nas infindáveis crueldades infligidas pelos habitantes de um canto deste pixel aos quase indistinguíveis habitantes de algum outro canto. Quão frequentes as suas incompreensões, quão ávidos de se matarem e o quão fervorosamente eles se odeiam.

Nossas atitudes, nossa imaginária auto-importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, é desafiada por este pálido ponto de luz.

O nosso planeta é um espécime solitário na grande e envolvente escuridão cósmica. Na nossa obscuridade - em toda essa vastidão -, não há nenhum indício de que a ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nós mesmos.

A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que abriga a vida. Não há mais algum - pelo menos no futuro próximo - para onde a nossa espécie possa emigrar. Visitar, pode. Assentar-se, ainda não. Gostando ou não, por enquanto, a Terra é onde temos de ficar.

Tem-se falado da astronomia como uma experiência criadora de humildade e de construção de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração das tolas e vãs soberbas humanas do que esta distante imagem do nosso miúdo mundo. Para mim, acentua a nossa responsabilidade para nos portar mais amavelmente uns para com os outros, e para protegermos e acarinharmos o pálido ponto azul, o único lar que nós conhecemos.”

 

Os telescópios orbitais Hubble e James Webb, as mais espetaculares conquistas da exploração espacial, estão nos levando, como nunca, a imergir, ao menos visual e imaginativamente, no teatro esplendoroso e arrebatador do Universo. Os geólogos, apaixonadamente agradecem.

 

 

Cumpre-nos aqui lembrar e reverenciar o naturalista, geólogo e médico escocês James Hutton (1726-1797), figura central e militante no chamado Iluminismo Escocês (Sapere Aude  - atreva-se a conhecer).

Corajosamente rompendo com a visão escolástica-religiosa sobre a origem da Terra e do Homem, que inclusive chegava ao cúmulo de determinar a data exata dessa criação em alguns poucos milhares de anos atrás, Hutton, analisando feições e estratos geológicos introduziu pioneiramente a dimensão da infinitude do tempo geológico e a noção do permanente dinamismo dos fenômenos geológicos. Afirmou Hutton:

 

“Desde o topo da montanha à praia do mar... tudo está em estado de mudança. Por meio da erosão a superfície da Terra deteriora-se localmente, mas por processos de formação das rochas ela se reconstrói em outra parte. A Terra possui um estado de crescimento e aumento; ela tem um outro estado, que é o de diminuição e degeneração. Este mundo é, assim, destruído em uma parte, mas renovado em outra”.

 

E conclui Hutton:

“Chegamos agora ao fim do nosso raciocínio (…) com a satisfação de descobrir que na natureza há sabedoria, sistema e consistência. Por ter, na história natural deste planeta, visto uma sucessão de mundos, posso daí concluir que existe um sistema na natureza; da mesma forma como ao ver as revoluções dos planetas conclui-se que existe um sistema pelo qual eles se destinam a continuar essas revoluções. Mas se a sucessão de mundos está estabelecida no sistema da natureza, é em vão procurar para qualquer coisa mais elevada para a origem da Terra. O resultado, portanto, de nossa presente investigação, é que não encontramos nenhum vestígio de um começo,  e tampouco a perspectiva de um fim.”

 

Palavras pronunciadas por John Playfair, outro eminente geólogo escocês, sobre sua sensação quando Hutton lhe mostrava a famosa discordância de Siccar Point, Escócia, em 1788: “A mente parecia ficar tonta olhando tão longe no abismo do tempo…”.  

 

“Tudo o que vemos na natureza geológica são estágios, paisagens que não foram assim antes e não serão assim no futuro. Sob a ação da energia telúrica e da energia solar, e tendo a própria Vida como um de seus agentes geológicos modificadores, a natureza é assim mutante, mantendo permanente o sentido maior de suas mutações: a busca de novas posições de equilíbrio. 

É nessa equação dinâmica que o Homem, com seus variados empreendimentos, interfere. Há pois que tê-la em conta. Por sagrado respeito e por um ato de inteligência.” (Álvaro)

 

 

2 - Na dimensão Humano – Civilizatória os geólogos se vêem entre os responsáveis por zelar pela manutenção em seu planeta das condições naturais essenciais ao provimento da Vida, não só da espécie humana como de todos os seres vivos que se desenvolveram nos diferenciados e mutantes ambientes terrestres.

O cumprimento dessa responsabilidade transcende as questões geológicas propriamente ditas ao se ver frente à visão utilitarista e predatória da Natureza, muito própria das atitudes humanas derivadas da ambição, do egoísmo, da deificação das riquezas materiais e do gozo de algum tipo de poder. Ganha assim, essa responsabilidade, os predicados de uma missão civilizatória, no âmbito da qual se insere o indispensável aperfeiçoamento dos atributos existenciais do ser humano.

Do ponto de vista científico o desafio é claro. Para o atendimento de suas necessidades (energia, transporte, alimentação, moradia, segurança física, comunicação...) o Homem é inexoravelmente levado a utilizar-se de uma série de recursos naturais (água, petróleo, minérios, energia hidráulica, solos...) e a ocupar e modificar espaços naturais das mais diversas formas (cidades, agricultura, indústria, minerações, usinas elétricas, vias de transportes, portos, canais, disposição de rejeitos ou resíduos...), o que implica necessariamente em interferir na natureza geológica e em seus processos dinâmicos, condição que já o transformou no mais poderoso agente geológico hoje atuante na superfície do Planeta. Para que esse “comando” da natureza seja coroado de êxito, suas intervenções devem incorporar (obedecer) as leis que regem as características geológicas dos materiais e dos processos geológicos naturais afetados.

 

“Nature to be commanded must be obeyed” já nos alertava Francis Bacon em 1620.

 

Para obedecê-las (as Leis da Natureza), entendê-las, ou seja, estudar e compreender o meio geológico que deverá sofrer determinada intervenção e como esse meio reagirá frente às novas solicitações que lhe serão impostas; de tal forma a traduzir esses conhecimentos nas atitudes comportamentais e nas soluções de engenharia a serem adotadas.  Será assim o trabalho do geólogo a condição elementar para que as atividades humanas dessa ordem sejam inteligentes, exitosas e provedoras da qualidade de vida no planeta, para essa e para as futuras gerações.

 

“Nas Ciências Naturais, e na Geologia em especial, o primeiro e essencial passo está em descobrirmos e assimilarmos as leis básicas da Natureza. Isso feito, as cortinas se abrem e a compreensão dos fenômenos naturais ou induzidos pelo Homem surge clara à nossa frente.” (Álvaro)

 

“A natureza sempre nos avisa, nunca nos pega desprevenidos. Claro, se para tanto temos bons olhos, ouvidos e demais sentidos educados e atentos ao bom diálogo geológico com a Terra. É preciso conversar com a Terra...”. (Álvaro)

 

“Conversem mais com a Terra, entendam suas leis e seus segredos, e então, juntos, Homem e Terra, cheguem, acumpliciadamente, à melhor solução”. (Álvaro)

 

Hans Closs-(1885- 1951), eminente geólogo alemão, entendendo o trabalho dos geólogos no patamar de uma responsabilidade civilizatória, assim se expressou: "Só uns poucos tomam, por todos os demais, o encargo nobre e pleno da responsabilidade de custodiar a escritura sagrada da Terra, de lê-la e interpretá-la, pois o enlace consciente do homem com sua estrela está confiado a uma ciência em especial, a GEOLOGIA".

 

Que todos os geólogos tenham a percepção da transcendência, da beleza e do alcance civilizatório de sua atividade profissional e das responsabilidades que, por decorrência de sua ciência mãe, a Geologia, lhes cabe abraçar e desempenhar.

 

3 – Na dimensão Científica – Profissional os geólogos se vêem frente à sua própria consciência no exercício de suas funções profissionais.

Cinco décadas de exercício profissional da geologia foram-me pródigas e eloqüentes na demonstração da íntima e indissociável relação, em nosso campo de atuação e nos mais diversos campos com os quais interagimos, entre as qualidades próprias do exercício profissional e os atributos humanos de seu executor.

De um lado da moeda, a questão técnica propriamente dita, a competência técnica, um permanente esforço em atualizações e aprofundamentos do conhecimento; de outro, o ser humano envolvido na questão, seus valores, sua atitude perante a Vida e perante as pessoas com que se relaciona.

A verdade é que em qualquer atividade social em que nos envolvamos, seja ela na área profissional ou na vivência familiar e social, somos fundamentalmente o resultado de nossos valores humanos; o que vale concluir que ninguém nunca será melhor como profissional do que é como ser humano.

Compreender essa indissociabilidade entre o fazer e o ser, e cultivar nossa base de valores íntimos, será sempre essencial para a realização virtuosa de nossas funções profissionais. Enfim, afortunado o ser humano que em seus serenos momentos solitários percebe-se feliz consigo próprio e orgulhoso de seus valores humanos. Esse sentimento pleno de realização constituirá sempre, e inexoravelmente, a base indispensável para a construção de uma exitosa carreira profissional.

 

4 – Na dimensão Política – Cidadã os geólogos são postos à frente de seu país e de sua população. Diga-se de início que essa dimensão não se refere a qualquer nuance de política partidária ou posicionamentos partidários e ideológicos, tratando-se sim de atitudes perante políticas públicas que melhor atendam as necessidades básicas do país e de sua população.

O fato é que o Brasil, com seu extenso território, é brindado pela Natureza geológica com grandes riquezas minerais, do petróleo ao nióbio, do ferro às águas subterrâneas. É natural assim que grandes interesses econômicos internacionais e nacionais apliquem suas estratégias para alcançar a posse e direitos sobre esses bens. Por obséquio dessa circunstância, muito da história política de nosso país, em seus mais tristes e graves momentos, tem, desde os tempos coloniais aos tensos tempos atuais, as digitais e o DNA dessa enorme cobiça internacional sobre nossas riquezas minerais.

De outro lado, a ocupação do território brasileiro, seja na área rural, seja no espaço urbano, tem refletido as enormes desigualdades sociais que marcam a sociedade brasileira. Especialmente no caso urbano o valor do metro quadrado do terreno tem sido o destacado fator de expulsão da população pobre para as áreas periféricas desassistidas e para áreas de potencial risco geológico, condição elementar da sucessão de tristes tragédias que tem consumido a esperança e a vida de milhares de brasileiros.

 

“A cidade, sem saber ser hipócrita, reproduz fielmente em seu desenho urbano as perversidades sociais da sociedade que a constrói e habita.” (Álvaro)

 

Impossível para os geólogos ficarem alheios às circunstâncias a que estão sujeitos seus dois grandes campos de atenção profissional, as riquezas minerais e a ocupação do território brasileiro. É assim natural que, enquanto categoria profissional e cidadãos, e a sociedade espera e confia que isso aconteça, os geólogos defendam a adoção de políticas públicas que resguardem os interesses econômicos do país e se apliquem no atendimento justo das necessidades humanas básicas da população mais pobre.

Diga-se de passagem que pelas batalhas que já travaram na defesa dos interesses nacionais a sociedade brasileira nutre pelos geólogos um sentimento extremamente positivo de admiração e confiança.

 

Concluindo, eu gostaria de registrar um lembrete aos geólogos que estão se formando e prestes a assumir seu primeiro emprego. Nunca definam sua escolha profissional por aquela especialidade que no momento esteja oferecendo maiores ofertas de emprego e maiores salários. Não cometa esse triste erro, defina sua especialidade por aquilo que lhe encanta, mesmo que isso implique em uma vida material e financeiramente menos ambiciosa. Como disse Niemeyer, “a vida é um sopro”, e é uma só. Não a desperdice.

 

Gostaria de finalizar citando um singelo poema de Mário Quintana, e que, ao seu jeito, expressa a essência da mensagem que, com humildade, pretendi hoje passar aos amigos geólogos.

 

“O Homem não é o que tem ou pode,
é um pouco do que sabe,
Muito do que sonha, mas, acima de tudo é
o que faz aos outros.”

                                       Mário Quintana